Pode um homossexual ser um comunista?
(Carta de Harry Whyte a Stalin, 1934 )
Um artigo sobre como, na União Soviética, as questões de identidade de gênero e de orientação sexual eram tratadas de forma preconceituosa e até criminosa na “revolução” comunista stalinista.
O presente texto é uma carta a Joseph Stalin em que o comunista britânico Harry Whyte apresenta uma defesa marxista da homossexualidade à luz de sua neocriminalização na URSS, apresentada no livro Moscou (Ugly Duckling Presse, Brooklyn, 2013), o novo livro do artista Yevgeniy Fiks, que mora em Nova Yorque. O livro documenta os locais gays na Moscou Soviética, desde os inícios dos anos 1920 à dissolução da URSS no início dos anos 1990. É nítido que a aceitação da homossexualidade proposta por Harry Whyte não é uma questão humanitária, mas sim algo que só poderia ser aceito se estivesse atrelado a simpatia e a dedicação ao comunismo. Um camarada gay seria aceito como tal, se e somente si fosse um “bom camarada” (no sentido militante), caso contrário...
Pode um homossexual ser membro do Partido Comunista?
Harry Whyte
Moscou, URSS
Maio, 1934
Camarada Stalin,
O conteúdo de meu apelo é resumidamente o seguinte. O autor desta carta, membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha, solicita uma fundamentação teórica do decreto de 7 de março do Comitê Executivo Central da URSS sobre [a instituição de] responsabilidade penal por sodomia (1). Uma vez que ele se esforça por se aproximar desta questão a partir de um ponto de vista Marxista, o autor desta carta acredita que o decreto contradiz tanto os fatos da própria vida quanto os princípios do Marxismo-Leninismo.
Aqui está um sumário dos fatos que são discutidos em detalhe na carta anexa:
1. Em geral, a condição dos homossexuais sob o capitalismo é análoga à condição das mulheres, das raças de cor, das minorias étnicas e de outros grupos que são reprimidos por uma razão ou outra;
2. A atitude da sociedade burguesa em relação à homossexualidade está baseada na contradição entre:
A) A necessidade do capitalismo de “carne de canhão” e de um exército de reserva de mão-de-obra (levando a leis repressivas contra a homossexualidade, que é considerada como uma ameaça às taxas de natalidade);
B) A pobreza crescente das massas sob o capitalismo (levando ao colapso da família da classe trabalhadora e ao aumento da homossexualidade).
3. Esta contradição somente pode ser resolvida em uma sociedade onde a liquidação do desemprego e o constante crescimento do bem-estar material dos trabalhadores promovam condições em que as pessoas que são normais no sentido sexual possam se casar.
4. A ciência confirma que uma percentagem insignificante da população sofre de homossexualidade inata.
5. A existência desta minoria insignificante não é uma ameaça à sociedade sob a ditadura do proletariado.
6. A nova lei sobre a homossexualidade provocou as mais variadas e contraditórias interpretações.
7. A lei de 7 de março contradiz fundamentalmente o princípio básico da lei anterior sobre a questão.
8. A lei de 7 de março pede essencialmente a “aniquilação” no âmbito da vida sexual.
9. A lei de 7 de março é absurda e injusta do ponto de vista da ciência, que provou a existência de homossexuais inatos e não tem meios a sua disposição para mudar a natureza sexual dos homossexuais.
Estimado camarada Stalin:
Embora eu seja um comunista estrangeiro que ainda não foi promovido ao AUCP(b) (2), no entanto penso que não vai parecer natural para você, o líder do proletariado mundial, que me dirija a você com um pedido para se lançar luz sobre uma questão que, ao que me parece, tem grande significado para um grande número de comunistas na URSS bem como em outros países.
A questão é a seguinte: pode um homossexual ser considerado alguém digno de pertencer ao Partido Comunista?
A lei recentemente promulgada sobre responsabilidade criminal por sodomia, que foi confirmada pelo Comitê Central Executivo da URSS em 7 de março deste ano, aparentemente significa que os homossexuais não podem ser reconhecidos como dignos do título de cidadãos soviéticos. Consequentemente, devem ser considerados ainda menos dignos de serem membros do AUCP(b).
Uma vez que tenho interesse pessoal nesta questão, na medida em que sou homossexual, dirigi esta pergunta a vários dos camaradas da OGPU e do Comissariado do Povo para a Justiça, a psiquiatras e ao camarada Borodin, o editor em chefe do jornal onde trabalho (3).
Tudo o que consegui obter deles foi um certo número de opiniões contraditórias que mostram que entre esses camaradas não há uma compreensão teórica clara do que pode ter servido de base para a aprovação de tal lei. O primeiro psiquiatra de quem busquei ajuda duas vezes com esta questão assegurou-me (depois de verificar isto junto ao Comissariado do Povo para a Justiça) que se eles são cidadãos honestos ou bons comunistas, seus pacientes podem organizar suas vidas pessoais como melhor lhes pareça. O camarada Borodin, que disse que ele pessoalmente tinha uma visão negativa da homossexualidade, ao mesmo tempo declarou que me considera como um comunista bastante bom, que poderia ser de confiança e que eu poderia levar minha vida pessoal como eu quisesse. Um pouco antes, quando a prisão de homossexuais tinha apenas começado, o camarada Borodin estava bastante indisposto em me ver como um delinquente potencial; ele não me considera um mau comunista, e isto foi confirmado pelo fato de que me promoveu no trabalho nomeando-me chefe da equipe editorial, que é a posição de supervisão mais elevada, à exceção dos membros do comitê editorial. Algo mais tarde, quando a versão de 17 de dezembro da lei já existia, mas antes do decreto de 7 de março, entrei em contato com a OGPU em conexão com a prisão de certa pessoa com quem eu tive relações homossexuais. Disseram-me que não havia nada que me incriminasse (Mas, em relação a tal “certa pessoa”???).
Todas estas declarações produziram a impressão de que os órgãos de justiça soviéticos não processam a homossexualidade como tal, apenas alguns homossexuais socialmente perigosos. Se este é realmente o caso, então há necessidade de uma lei geral?
No entanto, por outro lado, depois que a lei foi emitida em 7 de março, eu tive uma conversa na OGPU na qual me disseram que a lei se aplica estritamente a todos os casos de homossexualidade que sejam trazidos à luz.
Em relação à falta de claridade que existe nesta matéria, dirijo-me a você na esperança de que você encontrará tempo para me dar uma resposta.
Permita-me explicar-lhe como entendo esta questão.
Em primeiro lugar, gostaria de assinalar que vejo a condição dos homossexuais que são de origem operária ou mesmo trabalhadores como análoga à condição das mulheres sob o regime capitalista e das raças de cor que são oprimidas pelo imperialismo. Esta condição também é similar em muitos aspectos à condição dos judeus sob a ditadura de Hitler, e em geral não é difícil ver nisto uma analogia com a condição de qualquer camada social submetida à exploração e perseguição sob domínio capitalista.
Quando analisamos a natureza da perseguição de homossexuais, devemos ter em mente que existem dois tipos de homossexuais: em primeiro lugar, os que são do jeito desde que nasceram (além disso, se os cientistas discordam sobre as razões precisas disto, então não há discordância de que existem certas razões profundas); em segundo lugar, existem homossexuais que tiveram uma vida sexual normal, mas depois se tornaram homossexuais, algumas vezes por maldade, algumas vezes por considerações econômicas.
Para o segundo tipo, a questão se resolve de forma relativamente simples. Pessoas que se tornam homossexuais em virtude de sua depravação em geral pertencem à burguesia, vários de cujos membros tomam este caminho de vida depois de se sentirem saciados com todas as formas de prazer e perversidade que estão disponíveis nas relações sexuais com mulheres. Entre aqueles que levam esta forma de vida por considerações econômicas, encontramos membros da pequena burguesia, do lumpenproletariado e (por mais estranho que possa parecer) do proletariado. Em consequência da escassez material, particularmente agravada durante períodos de crise, estas pessoas são forçadas temporariamente a se voltar para este método de satisfazer seus impulsos sexuais na medida em que a falta de meios lhes priva da possibilidade de casar ou pelo menos de contratar os serviços de prostitutas. Existem também aqueles que se tornam homossexuais não para satisfazer seus impulsos, mas para ganhar seu sustento através da prostituição (este fenômeno se espalhou particularmente na moderna Alemanha).
Mas a ciência estabeleceu a existência de homossexuais inatos. A investigação demonstrou que os homossexuais deste tipo existem em proporções aproximadamente iguais dentro de todas as classes da sociedade. Igualmente, pode-se considerar como fato estabelecido que, com pequenos desvios, os homossexuais em geral constituem em torno de dois por cento da população. Se aceitarmos esta proporção, segue-se que existem em torno de dois milhões de homossexuais na URSS. Sem mencionar o fato de que entre estas pessoas existem, sem dúvida, os que estão ajudando na construção do socialismo, pode ser possível, como exige a lei de 7 de março, que um número tão grande de pessoas seja submetido à prisão?
Assim como as mulheres da classe burguesa sofrem em grau significativamente menor das injustiças do regime capitalista (você naturalmente se lembra do que disse Lênin a respeito), também os homossexuais natos da classe dominante sofrem muito menos da perseguição do que os homossexuais do meio operário. Deve-se dizer que mesmo dentro da URSS há condições que complicam as vidas cotidianas dos homossexuais e que frequentemente os colocam em situação difícil. (Tenho em mente as dificuldades para se encontrar um parceiro para o ato sexual, na medida em que os homossexuais constituem uma minoria da população, uma minoria que é forçada a esconder suas verdadeiras inclinações em um grau ou outro).
Qual a atitude da sociedade burguesa para com os homossexuais? Mesmo se levarmos em conta as diferenças existentes a este respeito na legislação de vários países, podemos falar de uma atitude especificamente burguesa nesta questão? Sim, podemos. Independentemente destas leis, o capitalismo é contra a homossexualidade em virtude de toda a sua tendência de classe. Esta tendência pode ser observada através do curso da história, mas se manifestou com força especial durante o período da crise geral do capitalismo.
O capitalismo, que necessita de um enorme exército industrial de reserva e de carne de canhão para florescer, considera a homossexualidade como um fator que ameaça com menores taxas de natalidade (como sabemos, nos países capitalistas existem leis que punem o aborto e outros métodos de concepção).
Naturalmente, a atitude da burguesia para com a questão homossexual é pura hipocrisia. Leis estritas são causa de poucos incômodos para o homossexual burguês. Quem estiver familiarizado com a história interna da classe capitalista sabe dos escândalos periódicos que surgem a este respeito: além do mais, membros da classe dominante envolvidos nestes assuntos sofrem em grau insignificante. Posso citar um fato pouco conhecido a este respeito. Vários anos atrás, um dos filhos do Lord e Lady Astor foi condenado por homossexualidade. A imprensa inglesa e americana se omitiu de informar sobre isto, com a exceção do Morning Advertiser. Este jornal é de propriedade de fabricantes de cerveja, e era de seu interesse comprometer Lord e Lady Astor, que tinham agitado pela introdução da proibição. Assim, o fato da [condenação de Astor] tornou-se conhecido graças às contradições dentro da classe dominante.
Graças a sua riqueza, a burguesia pode evitar a punição legal que desce com toda a sua severidade sobre os trabalhadores homossexuais com exceção dos casos em que estes últimos se prostituíram com membros da classe dominante.
Já mencionei que o capitalismo, que tem necessidade de carne de canhão e de um exército de reserva de mão-de-obra, tenta combater a homossexualidade. Mas, ao mesmo tempo, através da piora das condições de vida dos trabalhadores, o capitalismo produz as condições objetivas para o aumento do número de homossexuais que adotam este estilo de vida em virtude de necessidades materiais.
Esta contradição se refletiu no fato de que o fascismo, que empregava o pederasta [Marinus] van der Lubbe (4) como arma em sua provocação, ao mesmo tempo em que suprimia brutalmente o movimento da intelligentsia liberal de “libertação” dos homossexuais, dirigido pelo Dr. Magnus Hirschfeld (5). (Ver o Brown Book, que cita o caso de Hirschfeld como um exemplo da barbárie anti-cultural dos fascistas) (6).
Outro reflexo desta contradição é a figura de André Gide, escritor homossexual francês, dirigente do movimento antifascista e ardoroso amigo da URSS. O público em geral na França sabe da homossexualidade de Gide porque ele escreve sobre isto abertamente em seus livros. E, no entanto, sua autoridade entre as massas como um companheiro de viagem do partido comunista na França não foi abalada. O fato de Gide ter-se juntado ao movimento revolucionário não impediu seu crescimento ou o apoio das massas à liderança do partido comunista. Na minha opinião, isto demonstra que as massas não são intolerantes com os homossexuais.
Elogiando a “pureza da raça” e os valores familiares, o fascismo adotou uma posição ainda mais dura contra a homossexualidade do que o governo pré-Hitler. Contudo, porque o fascismo destrói a família da classe trabalhadora e promove o empobrecimento das massas, ele estimula essencialmente o desenvolvimento do segundo tipo de homossexualidade que descrevi – isto é, [a homossexualidade] em casos de necessidade.
A única solução para esta contradição é a transformação revolucionária da ordem existente e a criação de uma sociedade em que a ausência do desemprego, a crescente prosperidade das massas e a liquidação da família como unidade econômica, assegurem as condições nas quais ninguém será forçado à pederastia em casos de necessidade. Quanto aos chamados homossexuais inatos, enquanto percentagem insignificante da população, eles são incapazes de ameaçar a taxa de natalidade no estado socialista.
“Os resultados gerais do crescimento da prosperidade material levaram ao fato de que, enquanto as taxas de mortalidade cresceram junto à pobreza nos países capitalistas, a mortalidade decresceu e as taxas de natalidade aumentaram na URSS. Comparada aos anos pré-guerra, a população na URSS aumentou em um terço, enquanto na Europa capitalista caiu em dez por cento. Hoje, nosso país com sua população de 165 milhões de habitantes mostra o mesmo aumento da população que a Europa capitalista com sua população de 360 milhões de habitantes. Como você pode ver, neste assunto o ritmo aqui é furioso (risos) ” (Informe do camarada Kaganovich sobre o trabalho do Comitê Central do AUCP(b) na conferência da organização de Moscou – os itálicos são do camarada Kaganovich).
Apesar das leis inusitadamente severas sobre o matrimônio que existem nos países capitalistas, a perversão no âmbito da vida sexual normal é significativamente mais disseminada nos países capitalistas do que na URSS, onde as leis sobre o matrimônio são mais livres e mais racionais do que no restante do mundo. É verdade, sabemos que nos primeiros anos da Revolução certas pessoas tentaram abusar da liberdade proporcionada pelas leis matrimoniais soviéticas. No entanto, estes abusos não foram detidos por medidas repressivas, mas pela amplitude da educação política e do trabalho cultural, e pela evolução da economia na direção do socialismo. Imagino que com relação ao homossexualismo (do segundo tipo) uma política similar se mostraria mais frutífera.
Sempre acreditei que era um erro avançar separadamente a palavra de ordem da emancipação dos homossexuais da classe trabalhadora a partir das condições da exploração capitalista. Creio que esta emancipação é inseparável da luta geral pela emancipação de toda a humanidade da opressão da exploração da propriedade privada.
Não tinha nenhuma intenção de transformar isto em um problema, de colocar esta questão teoricamente e de buscar uma opinião definitiva sobre esta questão do Partido. Contudo, no momento, a própria realidade me obrigou a colocar esta questão, e considero que seja essencial alcançar um esclarecimento geral sobre este tema.
O camarada Borodin indicou-me que o fato de que eu ser homossexual de forma alguma diminui meu valor como revolucionário (não era pra ser “como ser humano”?). Ele demonstrou grande confiança em mim, indicando-me como chefe de redação. Então, ele não me trata como alguém que pode se tornar ou que foi um criminoso condenado. Ele também me indicou que minha vida pessoal não era algo que pudesse prejudicar até mesmo no menor grau minha condição de membro do Partido e do trabalho editorial.
Quando apresentei a ele a questão das detenções, ele mais uma vez (e a OGPU através dele) assegurou-me que no caso dado as razões [para as detenções] eram de natureza política, e de forma alguma de natureza social ou moral, embora a variante de 17 de dezembro da lei já existisse então. Depois de fazer a solicitação correspondente à OGPU, me disseram: “Não há nada de incriminador contra você”. Quando soube da variante de 17 de dezembro da lei, recebi respostas de tipo similar de certo número de pessoas. É verdade que o camarada Degot, do Comissariado do Povo da Justiça, disse que a razão para a lei era que o homossexualismo era uma forma de degenerescência burguesa.
O especialista em psiquiatria com quem eu falei sobre este tema se recusou a acreditar na existência de tal lei até que mostrei uma cópia para ele.
Apesar da existência de certo número de interpretações incorretas por parte de certos camaradas, é completamente óbvio que no período precedente à promulgação da lei, a opinião pública sobre esta questão não era em absoluto hostil aos homossexuais. E isto não me surpreendeu em absoluto.
Aceitei as detenções de homossexuais como um fenômeno totalmente natural, na medida em que na ocasião [das detenções] havia razões de natureza política. Como já mencionei, tudo isto estava de acordo com minha própria análise da questão (como se indica acima), e exatamente da mesma forma não contradiz o ponto de vista expresso oficialmente pelo público soviético. O camarada Borodin me assinalou que não deveria dar demasiada importância ao artigo sobre homossexualismo na Grande Enciclopédia Soviética porque (disse ele) seu autor era ele próprio homossexual e o artigo foi publicado durante um período em que uma série de desvios ainda não tinham sido expostos. Não acho que devamos desconfiar de uma história do Partido Comunista se um comunista a escreveu. Se um homossexual de fato escreveu este artigo, então, tudo o que se exigia dele era uma abordagem objetiva e científica do homossexualismo. Em segundo lugar, sei tanto sobre a eficácia do controle político soviético da imprensa que não posso admitir a possibilidade de que um artigo com desvios sérios pudesse ser impresso numa publicação como a Grande Enciclopédia Soviética. Se isto é possível quando se trata de artigos individuais em alguma revista ou jornal insignificantes, então não é possível na Grande Enciclopédia Soviética. Em qualquer caso, pensei que era possível ter plena confiança em uma publicação cujos editores incluem pessoas como Molotov, Kuibyshev e Pokrovsky (ou mesmo Bukharin, embora ele mereça menos confiança).
Contudo, do ponto de vista que estou defendendo, o artigo na Grande Enciclopédia Soviética não era de grande importância. A atitude do público soviético ante esta questão foi expressa com suficiente clareza na lei que existia exatamente até a adoção da Lei de 7 de março. Se a lei nada tinha dito sobre esta questão, então as dúvidas podem ter existido antes. Mas a lei de fato formulou uma opinião sobre esta questão: ela defendia os interesses da sociedade proibindo a sedução e perversão de menores. Mas isto nos leva a concluir que as relações homossexuais entre adultos não foram proibidas.
A lei, naturalmente, é dialética: muda enquanto as circunstâncias mudam. É óbvio, no entanto, que quando a primeira lei foi ratificada, toda a questão do homossexualismo foi levada em conta como um todo (isto, de qualquer forma, é o que se poderia pensar na base da conclusão do que se seguiu a partir da lei). Esta lei estabelecia que o governo soviético rechaçava completamente o princípio da perseguição ao homossexualismo. Este princípio é de caráter fundamental, e sabemos que princípios básicos não se alteram a fim de torná-los compatíveis às novas circunstâncias. Alterar os princípios básicos para tal finalidade significa ser um oportunista e não um dialético.
Sou capaz de compreender que a alteração das circunstâncias também requer certas mudanças parciais na legislação, na aplicação de novas medidas para a defesa da sociedade, mas não posso entender como a alteração das circunstâncias pode nos forçar a mudar um de [nossos] princípios básicos.
Visitei dois psiquiatras em busca de uma resposta à questão de saber se era possível “curar” a homossexualidade – talvez você vá achar isto surpreendente. Admito que isto foi oportunismo de minha parte (desta vez, talvez, isto pode ser perdoado), mas fui motivado a fazer isto pelo desejo de encontrar algum tipo de solução para este maldito dilema. E menos ainda quero contradizer a decisão do governo soviético. Eu estava preparado para fazer qualquer coisa somente para evitar a necessidade de me encontrar em contradição com a lei soviética. Dei este passo apesar do fato de não saber se os pesquisadores contemporâneos foram bem-sucedidos em estabelecer a verdadeira natureza da homossexualidade e a possibilidade de converter homossexuais em heterossexuais – isto é, em pessoas que participam do ato sexual somente com membros do sexo oposto. Se essa possibilidade fosse um fato estabelecido, então tudo seria muito mais simples, naturalmente.
Mas, falando francamente, mesmo que esta possibilidade fosse estabelecida, eu ficaria incerto de todos os modos sobre se seria desejável de fato converter homossexuais em heterossexuais. Naturalmente, pode haver certas razões políticas que poderiam tornar isto desejável. Mas imagino que a necessidade de tal procedimento de nivelação deva estar motivada por razões inusitadamente fortes.
Sem dúvida é desejável que a maioria das pessoas sejam normais no sentido sexual. Temo, contudo, que isto nunca será o caso. E penso que meus temores são confirmados pelos fatos da história. Penso que se pode dizer com certeza que a maioria das pessoas deseja e continuará a desejar uma vida sexual normal. No entanto, duvido muito da possibilidade de que todas as pessoas se tornem completamente idênticas em termos de suas inclinações sexuais.
Gostaria de lembrar que os homossexuais constituem meros dois por cento da população. Você também deve se lembrar que entre estes dois por cento havia pessoas excepcionalmente talentosas como Sócrates, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Shakespeare e Tchaikovsky. Estes são aqueles sobre os quais sabemos que eram homossexuais. Mas quantas de muitas outras pessoas talentosas existem entre homossexuais que esconderam suas verdadeiras inclinações? Não tenho nenhuma intenção de defender a teoria absurda de que os homossexuais pertencem a uma raça de super-homens, que homossexualidade e genialidade são sinônimos, que os homossexuais chegarão algum dia, como se alega, a tomar sua vingança sobre a sociedade por seus sofrimentos unindo-se para conquistar heterossexuais. “Teorias” desta laia já foram condenadas com desprezo considerável (como merecem ser) por Engels em sua carta a Marx de 22 de junho de 1869. Nesta carta, Engels escreve sobre “teoria” proposta por uma camarilha de homossexuais burgueses alemães que tinham formado sua própria e especial organização. Engels classifica todo esse assunto com o epíteto de “porcarias” (schweinerei).
Que foi precisamente a “teoria” política da organização, e não a orientação sexual específica de seus membros, o que despertou a ira de Engels, pode ser visto em sua carta a [Friedrich] Sorge de 8 de fevereiro de 1890. Engels escreve:
“Aqui há outra tempestade em um copo d’água em curso. Você lerá em Labour Elector sobre o bafafá provocado por Peake [?], editor assistente do Star, que em um dos jornais locais acusou abertamente Lord Gaston de sodomia em relação à escandalosa homossexualidade da aristocracia local. O artigo foi vergonhoso, mas foi apenas de natureza pessoal; o assunto não era político”. [A tradução é imprecisa e feita a partir do texto publicado em inglês em um jornal comunista inglês].
“O assunto não era político”. O fato de que Engels se refira ao caso de um membro da classe inimiga, que foi acusado de sodomia e que causou um escândalo no mundo aristocrático, como “não político”, como uma “tempestade em copo d’água”, é de grande e fundamental importância para nós. Se a homossexualidade é vista como um traço característico da degenerescência burguesa, então é correto atacar suas manifestações individuais, particularmente durante um período em que os escândalos homossexuais se generalizavam no meio aristocrático. Contudo, desprende-se da citação que Engels não considerava a homossexualidade como uma forma específica de degeneração burguesa. Ele atacou somente quando (como, por exemplo, nos casos envolvendo a Alemanha) ela adotou a forma política de uma associação de certos elementos burgueses. Quando, por outro lado, o assunto não tinha conotações políticas (como no caso acima citado), Engels não considerou necessário atacá-lo.
Assumo que certos tipos de talento (em particular, o talento no âmbito das artes) são de forma surpreendente frequentemente combinados à homossexualidade. Isto deve ser levado em conta, e me parece que se deve pesar cuidadosamente os riscos da nivelação sexual precisamente neste ramo da cultura soviética, no momento ainda não possuímos uma explicação suficientemente científica da homossexualidade.
Eu me permitirei citar uma passagem do informe do Camarada Stalin ao XVII Congresso do Partido:
“[Qualquer] leninista sabe, se for um leninista genuíno, que o nivelamento no âmbito das necessidades e da vida pessoal cotidiana é um absurdo reacionário digno de alguma seita primitiva de ascetas, e não de um estado socialista organizado de forma Marxista, pois não se pode exigir que todas as pessoas devam ter necessidades e gostos idênticos, que todas as pessoas vivam suas vidas diárias de acordo com um único modelo […]
“Concluir disto que o socialismo requer o igualitarismo, a equalização e o nivelamento das necessidades dos membros da sociedade, o nivelamento de seus gostos e vidas pessoais, que de acordo com o Marxismo todos devem usar roupas idênticas e comer a mesma quantidade de um só e mesmo prato, é equivalente a proferir banalidades e caluniar o Marxismo” (Stalin, Informe ao XVII Congresso do Partido sobre os trabalhos do Comitê Central do AUCP(b). Lenpartizdat, 1934, pp. 54-55. Os itálicos são meus – H.W.).
Parece-me que este trecho do informe do Camarada Stalin tem direta influência sobre a questão que estou analisando.
No entanto, o que é importante é que mesmo quando se persegue este nivelamento no presente, é impossível alcançá-lo seja por meios médicos ou legislativos.
Quando ambos os psiquiatras a quem visitei foram forçados por minhas insistentes perguntas a confessar que existem casos de homossexualidade incurável, finalmente estabeleci minha própria atitude sobre a questão.
Deve-se reconhecer que existe tal coisa de homossexualidade inextirpável – ainda não encontrei fatos que refutem isto – e, portanto, parece-me, em consequência, que se deve reconhecer como inevitável a existência desta minoria na sociedade, seja uma sociedade capitalista ou mesmo uma sociedade socialista. Neste caso, não se pode encontrar qualquer justificativa em declarar essas pessoas penalmente responsáveis por seus traços distintivos, traços estes por cuja criação não carregam nenhuma responsabilidade e que são incapazes de mudar mesmo que quisessem.
Assim, na tentativa de raciocinar de acordo com os princípios do Marxismo-Leninismo como os entendo, cheguei no final à contradição entre a lei e as conclusões que acompanham minha linha de raciocínio. E é justamente esta contradição que me obriga a desejar uma declaração oficial sobre esta questão.
Saudações comunistas
Harry Whyte
Meu endereço: Bolshoi Afanasievskii, no 5, apt, 11; telefone: 3-34-33
Endereço profissional: Petrovskii pereulok, no 8, “Moscow Daily News”, tel: 2-58-71, 3-33-26.
Informação sobre o autor da carta
Whyte, Harry. 27 anos de idade. Nascido em Edimburgo, Escócia. Filho de um pintor da classe trabalhadora, que recentemente adquiriu seu próprio negócio. Ensino secundário. Profissão: jornalista. Trabalhou para jornais burgueses até 1932. Trabalhou em seu tempo livre para o jornal da Sociedade de Amigos da URSS, Rússia Hoje (de 1931 a 1932). Juntou-se ao Partido Trabalhista Independente em 1927; ao Partido Comunista da Grã-Bretanha em 1931. Participou da organização de células do partido e organizações distritais em Fleet Street, o centro da imprensa britânica. Em 1932, foi contratado para a equipe do Moscow News (Moskovskie Novosti). Em 1933, foi nomeado chefe da equipe editorial deste jornal. Foi assinalado como o melhor trabalhador de vanguarda. A promoção ao AUCP(b) do Partido Comunista da Inglaterra [sic] foi adiada até o total expurgo do partido.
NB. Os argumentos expostos na carta anexa foram originalmente formulados por mim em uma carta ao Camarada Borodin, chefe de redação do Moscow Daily News, na esperança de que ele dirigiria à atenção do camarada Stalin a questão que abordo. Contudo, ele considerou impossível fazer isto. Além do assinalado na presente carta, a carta endereçada ao camarada Borodin também contém certos fatos que me preocupam pessoalmente e que não têm, em geral, grande incidência sobre a questão em consideração, mas que, no entanto, considerei necessário trazer a sua atenção. Uma cópia desta carta foi apresentada à OGPU a seu pedido, na medida em que informei a um camarada da OGPU sobre esta carta.
AP RF [Arquivo do Presidente da Federação Russa], f. 3, op. 57, d. 37, I. 29-45; cópia notariada.
A primeira página da carta contém a instrução: “Arquive-se. Um idiota e um degenerado. J. Stalin”.
Notas para a tradução:
O texto original russo desta carta foi publicado no jornal Istochnik (5/6/1993): 185-191) sob a rubrica “Humor do Arquivo Secreto”. O texto entre colchetes foi inserido pelo tradutor para clareza e para facilitar a leitura.
1. A homossexualidade masculina foi criminalizada em toda a União Soviética em 1933-1934. A violação do artigo 121 do código criminal soviético implicava em pena de cinco anos de prisão. A lei não foi revogada até 1993. Para uma breve história desta lei (incluindo uma discussão da carta de Harry Whyte a Stalin), ver Leslie Feinberg, “Pode um homossexual ser membro do Partido Comunista?”. Workers World, 7 de outubro, 2004.
2. All-Union Communist Party (bolchevique). Foi renomeado como Partido Comunista da União Soviética em 1952.
3. Mikhail Borodin (1884-1951) era o pseudônimo de Mikhail Gruzenberg, um agente da Comintern. Foi editor-chefe do Moscow Daily News (fundado pela jornalista americana Anna Louise Strong, em 1930) de 1932 a 1949. Borodin foi preso como parte da campanha contra os “cosmopolitas”. De acordo a algumas fontes, ele morreu em um campo de trabalho na Sibéria em 1951. De acordo com outras fontes, ele foi fuzilado na prisão de Lefortovo (Moscou) em 1949. O jornal foi fechado depois de sua prisão, retomando a publicação somente em 1956.
4. Marinus van der Lubbe (1909-1934) foi o jovem comunista holandês acusado de incendiar o Reichstag alemão em 27 de fevereiro de 1933. Ele foi sentenciado à morte pelo crime e guilhotinado em Leipzig em 10 de janeiro de 1934.
5. Magnus Hirschfeld (1868-1935) era um médico judeu-alemão, sexólogo e ativistas dos direitos dos gays. Whyte provavelmente se refere aqui ou ao Comitê Científico Humanitário, uma organização da qual Hirschfeld foi co-fundador em 1897 para repelir a criminalização do homossexualismo na Alemanha, ou ao seu Institut für Sexualwissenschaft (Berlim). Os nazistas atacaram o instituto em 6 de maio de 1933 e queimaram muitos dos livros de sua livraria.
6. O Livro Cinzento do Terror de Hitler e o Incêndio do Reichstag foi um livro publicado pelo Comitê Mundial para o Desagravo das Vítimas do Fascismo Alemão em 1933. Ele foi traduzido em muitas línguas (inclusive a língua russa) e se venderam milhões de cópias por todo o mundo.
Artigo publicado originalmente em 27 de junho de 2015, no site The Charnel-House, sob o título “Can a homosexual be a communist? Harry Whyte’s letter to Stalin, 1934“.
Tradução de Fabiano Leite.