
A censura no Regime Militar foi realmente tão ruim? (parte 2)
Durante o regime militar, a censura à produção cultural passa a perseguir ideias contrárias aos interesses dos militares – mesmo aquela que não tivesse conteúdo diretamente político. E muitas canções foram censuradas por motivo moral, por discriminação, preconceito e, principalmente, pela falta de preparo dos censores. João Carlos Muller Chaves, na época advogado da Phonogram e EMI-Odeon, ressalta a questão do critério no órgão de censura: “O critério era não ter critério. Às vezes eles barravam determinada música por não entenderem o que estava escrito ali. Não estavam preparados para aquela atividade, foram remanejados de outros departamentos e caíram em uma função jamais imaginada por eles”.
E na falta de verso, o silêncio também poderia ser visto como ameaça. É o caso do álbum instrumental “Casa Forte”, lançado pelo compositor Edu Lobo, em 1971. Segundo o DCDP, se não há palavras, qualquer interpretação é possível e as faixas poderiam ser usadas como propaganda anti-regime. Bom, se o poeta Ferreira Gullar foi acusado de manter relações com Cuba após a polícia apreender em sua casa um livro com o título “Do Cubismo à Arte Neoconcreta”… Como bem pontua o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony. “A gente contava com dois fatores, um a favor e outro contra. O a favor era o seguinte: os censores eram muito burros, então não percebiam certas nuances. Por sua vez, por serem muito burros, muitas vezes cismavam com coisas que não tinham nada demais e proibiam uma peça ou uma música”.
Censura na música:
Era na música que os protestos mais pungentes contra o regime estavam presentes. Na maioria das vezes, eles vinham mascarados por inversões, ironias, duplos sentidos e estratégias linguísticas que não raro passavam despercebidas pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), mas nunca pelo público. Aos olhos dos censores, contudo, não era só o posicionamento contra o governo que chamava a atenção, mas também todo e qualquer termo ou situação que atentasse contra a moral e os bons costumes.
Chico Buarque
Apesar de você
Composta diretamente para afirmar o descontentamento de Chico com a situação do país em 1970, Chico enviou Apesar de Você à censura fingindo tratar-se de uma canção sobre uma relação que terminava, mas tendo certeza de que seria vetada. Para sua surpresa, inicialmente a letra foi aceita e a música foi lançada em compacto, alcançando grande sucesso.
Quando a canção se tornou mania, alcançando status de hino de esperança e resistência contra o regime, foi que a censura percebeu o sentido real e proibiu a canção. Já era tarde.
Apesar de você (Chico Buarque)
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse Estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
O compacto com as músicas “Desalento” e “Apesar” de você vendeu mais de 100 mil cópias e foi somente meses mais tarde, depois de ser publicada uma nota sobre a música em um jornal, que o governo sacou: o estado de que Chico falava era com “e” maiúsculo e a desavença era com Médici – em um interrogatório, contudo, o cantor bateu o pé ao ser questionado sobre quem era o “você” da canção. “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”, teria dito.
Jorge Maravilha (Chico Buarque, sob heterônimo de Julinho da Adelaide)
Quando Chico Buarque tapeou a censura com “Apesar de você”, ele despertou a “ira” dos censores, que passaram a vetar praticamente toda canção cuja autoria fosse de Chico. Então, para driblar a censura, Chico usou um pseudônimo: Julinho da Adelaide. Foi assim que ele lançou o LP “Sinal Fechado” em 1974 e várias canções que se valiam de metáforas e dos artifícios já mencionados para se referir ao regime e lançar provocações. Uma delas foi “Jorge Maravilha”, cujo verso “Você não gosta de mim mas sua filha gosta” chegou a ser interpretado como pirraça ao então presidente Geisel, já que sua filha teria admitido gostar das músicas de Chico. Julinho chamou tanta atenção que Chico chegou a dar entrevista para o jornal Última Hora incorporando o personagem.
Matéria no jornal sobre Julinho da Adelaide
Depois de descobrir o “esquema” de Chico, a censura passou a exigir RG e CPF dos compositores.
Adoniran Barbosa
Tiro ao Álvaro
A justificativa para a proibição da clássica canção “Tiro ao Álvaro”, do sambista paulista Adoniran Barbosa, revela o apreço ao português bem falado dos parâmetros da censura: a “falta de gosto” por conta do “erros” de pronúncia e de português na letra impediam sua liberação. “Tauba”, “artomórve”, “revorve”.
Documento vetando a letra de ‘Tiro ao Álvaro’
O que o sambista estava fazendo era um claro recurso poético, utilizado desde os modernistas do início do século, de assumir a coloquialidade da fala popular em uma letra de música. O censor no entanto tratou como erros de português.
Caetano Veloso
Vaca Profana
A música foi censurada em 1984, quando Gal Costa lançou a canção no álbum “Profana”. O motivo da censura foi a violação da moral e dos bons costumes,
Vaca profana (Caetano Veloso)
Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Ê, ê, ê, ê, ê
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Segue a movida Madrileña
Também te mata Barcelona
Napoli, Pino, Pi, Paus, Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horiz
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca de divinas tetas
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los puretas
Quero que pinte um amor Bethânia
Stevie Wonder, Andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk's blues
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk's
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas
Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos ai
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é 'meu bem, meu mal'
No mais, as ramblas do planeta
Orchta de chufa, si us plau
No mais, as ramblas do planeta
Orchta de chufa, si us
Ê, ê, ê, ê, ê,
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas
Caso tardio de censura, a canção de Caetano Veloso foi censurada em 1984, quando do lançamento do álbum Profana, de Gal Costa. Segundo a Divisão de Censura de Diversões Públicas, a letra de Caetano feria a moral e os bons costumes em seus versos semipornográficos e… profanos.
No disco “Índia”, em 1973, Gal Costa aparecia de tanga, em close, e na contra capa posava com os seios à mostra. Vetada, a arte do disco só foi liberada recentemente.
Já no álbum Jóia, de 1975, em que Caetano Veloso aparecia nu com sua mulher e seu filho, com pombas cobrindo a genitália, a censura só liberou as pombas.
Deus e o diabo
Caetano Veloso, 1973 (lançada em 1977)
Caetano, além de ter músicas censuradas, foi preso. Foram quatro idas e vindas a Brasília para tentar liberar a música. A marchinha de carnaval com associação a Deus e ao diabo irritou a religiosidade dos militares. Nos últimos versos da versão original “cidades maravilhosas dos bofes do meu Brasil”, o vocábulo “bofes” precisou ser substituído por “pulmões”. Pelo visto os censores militares não sabiam que bofe se refere a um parceiro homossexual.
Deus e o diabo
Você tenha ou não tenha medo
Nego, nega, o Carnaval chegou
Mais cedo ou mais tarde acabo
De cabo a rabo com essa transação de pavor
O carnaval é invenção do diabo
Que deus abençoou
Deus e o diabo no Rio de Janeiro
Cidade de São Salvador
Não se grile
A rua Chile sempre chega pra quem quer
Qual é! qual é! qual é!
Qual é! qual é!...
Quem pode, pode
Quem não pode vira bode
Foge pra praça da sé
Você tenha ou não tenha medo
Nego, nega, o Carnaval chegou
Mais cedo ou mais tarde acabo
De cabo a rabo com essa transação de pavor
O Carnaval é invenção do diabo
Que Deus abençoou
Deus e o diabo no Rio de Janeiro
Cidade de São Salvador
Não se grile
A rua Chile sempre chega pra quem quer
Qual é! qual é! qual é!
Qual é! qual é!...
Quem pode, pode
Quem não pode vira bode
Foge pra praça da sé
Cidades maravilhosas
Cheias de encantos mil
Cidades maravilhosas
Os pulmões do meu Brasil
Você tenha ou não tenha medo
Nego, nega, o Carnaval chegou
Mais cedo ou mais tarde acabo
De cabo a rabo com essa transação de pavor
O carnaval é invenção do diabo
Que deus abençoou
Deus e o diabo no Rio de Janeiro
Cidade de São Salvador
Não se grile
A rua Chile sempre chega pra quem quer
Qual é! qual é! qual é!
Qual é! qual é!...
Quem pode, pode
Quem não pode vira bode
Foge pra praça da Sé
Cidades maravilhosas
Cheias de encantos mil
Cidades maravilhosas
Os pulmões do meu Brasil
Compositores: Caetano, Emmanuel, Viana Teles Veloso
Blitz
Cruel, cruel esquizofrênico blues/Ela quer morar comigo na lua
Catapultado pelo enorme sucesso da canção “Você não soube me amar”, o primeiro disco da Blitz, “As Aventuras da Blitz”, de 1982, tornou-se um fenômeno, vendendo mais de 300 mil cópias e tornando-se um dos pontos fundadores do que viria a se tornar o BRock, o rock da geração 1980. Acontece que a censura ainda funcionava, e as duas últimas faixas do discos, “Cruel, cruel esquizofrênico blues” e “Ela Quer Morar Comigo na Lua”, foram vetadas, mesmo depois da primeira prensagem do disco já ter sido fabricado (a primeira por conter um palavrão, e a segunda provavelmente por cantar a palavra “bundando”).
Dizem que a solução encontrada foi riscar manualmente as faixas em 30 mil cópias. Porém, isso parece ser improvável.
Milton Nascimento
Milagre dos Peixes
O seu disco, Milagre dos Peixes, de 1973, foi praticamente censurado por completo por conter letras que instigavam à luta armada e fazia críticas violentas aos militares. 8 das 11 faixas tiveram suas letras proibidas pela censura. O plano de Milton era deixar cinco das onze faixas apenas instrumentais. O número foi elevado a oito por força do veto a três letras, obrigando-o a compensar a falta de texto com vozes.
Bodas
Milton Nascimento
Chegou no porto um canhão
Dentro de uma canhoneira, neira, neira...
Tem um capitão calado
De uma tristeza indefesa, esa, esa...
Deus salve sua chegada
Deus salve a sua beleza
Chegou no porto um canhão
De repente matou tudo, tudo, tudo...
Capitão senta na mesa
Com sua fome e tristeza, esa, esa...
Deus salve sua rainha
Deus salve a bandeira inglesa
Minha vida e minha sorte
Numa bandeja de prata, prata, prata...
Eu daria à corte atenta
Com o cacau dessa mata, mata, mata...
Daria à corte e à rainha
Numa bandeja de prata, prata, prata...
Pra ver…
Hoje é dia de El-Rey
Milton Nascimento e Marcio Borges
Não pode o noivo mais ser feliz
Não pode viver em paz com seu amor
Não pode o justo sobreviver
Se hoje esqueceu o que é bem-querer
Rufai tambores, saudando El-Rey
Nosso amo e senhor dono da lei
Soai clarim pois o dia do ódio e o dia do não
Vem com El-Rey
Filho meu, ódio você tem
Mas alguém quer provar o seu amor
Sem clarins e sem mais tambor
Nenhum rei vai mudar a velha dor
Juntai as muitas mentiras
Jogai soldados na rua
Nada sabeis desta terra
Hoje é o dia da lua
Filho meu, cadê teu amor
Nosso rei tá sofrendo a tua dor
Leva daqui tuas armas
Então cantar poderia
Mas em teus campos de guerra
Ontem morreu a poesia
El-Rey virá calar…
Meu filho você tem razão
Mas acho que não é em tudo
Se a gente fosse o que pensa
Estava em outro lugar
Medo ninguém tinha agora
E tudo podia mudar
Matai o amor, pouco importa
Pois outro haverá de surgir
O mundo é pra frente que anda
Mas tudo está como está
Hoje então e agora
Pior não podia ficar
Largue seu dono, viaje noutra poesia
Se hoje é triste e coragem pode matar
Vem, amizade não pode ser com maldade
Se hoje é triste a verdade
Empurre a porta sombria
Encontre nova alegria para amanhã.
Em uma entrevista o Milton Nascimento afirmou: “o tempo da canção passou. Regravá-la hoje teria como único propósito um mergulho no passado, algo mais interessante para a História. Eu a considero obra do tempo dela, metafórica, até certo ponto infantil. Éramos jovens.”
Zé Keti
Acender as velas
Uma das obras-primas de Zé Keti, Acender as Velas foi, assim como o clássico samba Opinião, proibida por motivos evidentes: As canções denunciavam a dureza e o calvário do dia-a-dia na favela em meados dos anos 1960, revelando a violência da situação social da população mais carente dos morros cariocas na época. As críticas sociais não eram bem vistas pelo militares.
Acender As Velas
Zé Keti, 1964
Acender as velas
Já é profissão
Quando não tem samba,
Tem desilusão (2x)
É mais um coração
Que deixa de bater
Um anjo vai pro céu
Deus me perdoe, mas vou dizer
Deus me perdoe, mas vou dizer
O doutor chegou tarde demais
Porque no morro não tem automóvel pra subir
Não tem telefone pra chamar
E não tem beleza pra se ver
E a gente morre sem querer morrer
E a gente morre sem querer morrer
Gilberto Gil/Chico Buarque
Cálice
Repleta de metáforas a respeito da situação política e social do país de então, a composição partiu de Gilberto Gil, em 1973, em alusão à fala e ao calvário de Jesus Cristo no refrão. O duplo sentido e a ambiguidade marcam a palavra “cálice” com o imperativo “cale-se”, e foi utilizado como tentativa de, em um elaborado jogo de palavras, criticar e ao mesmo tempo driblar a censura.
No dia de lançamento da canção, no histórico show Phono 73, os microfones foram cortados, e a música foi cantada aos trancos e barrancos, sem letra, somente com melodia e a repetição do título.
A canção só viria a ser de fato lançada oficialmente em 1978.
Taiguara
Que as crianças cantem livres
De todos os compositores perseguidos pela censura e pela ditadura, é provável que nenhum outro tenha sido tão prejudicado quanto foi Taiguara. Nada menos que 68 de suas canções foram proibidas. “Que as crianças cantem livres”, já pelo título, era uma crítica direta às proibições do regime. A música só veio a ser liberada em 1982.
Mais conhecido por suas canções românticas, o cantor Taiguara foi um dos músicos mais censurados durante o regime civico-militar instituída no Brasil em 31 de março de 1964 e que durou 21 anos.
"Tinta Fresca" foi uma das músicas de Taiguara censuradas pelo regime militar.
Janes explica que as músicas românticas eram da época em que Taiguara era mais conhecido. No entanto, quando o regime militar começou a censurar trabalhos artísticos, ele acabou se auto exilando em Londres e, depois, na Tanzânia. No meio tempo, se aproximou da luta política e chegou a militar junto ao Partido Comunista.
Parabéns pelo Texto.
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